“e foi com tais homens e mulheres do chão levantados, pessoas reais primeiro, figuras de ficção depois, que aprendi a ser paciente, a confiar e a entregar-me ao tempo, a esse tempo que simultaneamente nos vai construindo e destruindo para de novo nos construir e outra vez nos destruir. Só não tenho a certeza de haver assimilado de maneira satisfatória aquilo que a dureza das experiências tornou virtude nessas mulheres e nesses homens: uma atitude naturalmente estóica perante a vida. Tendo em conta, porém, que a lição recebida, passados mais de vinte anos, ainda permanece intacta na minha memória, que todos os dias a sinto presente no meu espírito como uma insistente convocatória, não perdi, até agora, a esperança de me vir a tornar um pouco mais merecedor da grandeza dos exemplos de dignidade que me foram propostos na imensidão das planícies do Alentejo. O tempo o dirá.”
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O Percurso Pedestre José Saramago em Monte Lavre convida o viajante a refazer os principais caminhos do escritor durante a sua estadia em Lavre no ano de 1976 e outras visitas, passando pelos principais locais onde viveram aqueles homens e aquelas mulheres que inspiraram a obra Levantado do Chão. Estávamos em plena Reforma Agrária e o autor foi acolhido da melhor forma, dormia na Cooperativa Vento de Leste, comia em casa da família Besuga e encontrava sempre companhia para as suas deambulações e sempre com quem conversar.
O percurso termina na Ponte Cava, com dois pontos de interesse a assinalar, um literário, por ser este sítio perto do referido moinho onde «Sara da Conceição» se refugiara, outro biográfico, por ter sido este um lugar de inspiração para José Saramago, na construção do Levantado do Chão. Na Ponte Cava, o autor observava os ranchos a deslocarem-se para os trabalhos rurais e aproveitava sempre a oportunidade para meter conversa e tomar o pulso ao povo. É um percurso paralelo à Ribeira de Lavre, com zonas verdes e zonas de lazer que convidam o viajante a momentos de grande inspiração.
Designação:
Percurso temático
Nome:
José Saramago – o escritor em Monte Lavre
Coordenadas:
38°46’34”N 8°22’15” (Casa de Mariana e João Besuga, Lavre)
Freguesia:
União de Freguesias de Cortiçadas de Lavre e Lavre
Concelhos:
Montemor-o-Novo
Acessos:
IC10 – Rua 5 de Outubro – Rua da Liberdade – Rua Bernardino Machado – Rua Machado dos Santos – Rua de Santo António – seguir a sinalização do percurso junto à Ribeira de Lavre
Tipo:
Pedestre
Distância:
3 Km pedestres
Duração média:
2 horas
Tipo de caminho:
Urbano e terra batida
Sinalizado:
Sim
Proprietários:
Caminhos públicos
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As primeiras referências à vila de Lavre ou Lavar (a sua designação na Idade Média) remontam ao século XIII. A vila de Lavre ascendeu a sede de município em 1304, com o foral de D. Dinis. Permaneceu na posse da coroa até 1430, ano em que D. João I a entregou ao alemão Lamberto Horques, com o objetivo de impulsionar o povoamento da região. Em 1520, Lavre recebe novo foral Manuelino. Foi uma das terras alentejanas mais afetada pelo sismo de 1755. Foram provocados estragos na maioria dos seus edifícios. A partir desta data, Lavre passa por um período de maior decadência e, em 1836, o concelho é extinto e o seu território anexado a Montemor-o-Novo. Lavre pertence ao concelho de Montemor-o-Novo, possui uma área de 116,40 Km2, e tem uma população de 740 habitantes (2011).
Contactos úteis:
União de Freguesias de Cortiçadas de Lavre e de Lavre
265 894 193
Contactos de emergência:
GNR 265 894 211
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À saída norte de Lavre, o viajante vira à esquerda, junto a um antigo bebedouro, e logo se depara com uma placa comemorativa dos vinte e cinco anos do Levantado do Chão que denuncia a casa dos Besuga.
Enquanto esteve em Lavre, no ano de 1976, José Saramago fez sempre as suas refeições em casa de Mariana e João Besuga.Em 2019, Mariana Besuga, embora aos cuidados da sua filha Paula Alves, a viver em Lisboa, fez questão de nos receber na mesma casa que acolheu José Saramago, com os mesmos braços abertos. Em Lavre, a memória desta casa ainda está bem viva entre os mais velhos. Durante a Reforma Agrária, Mariana e João abriam as portas de casa para funcionar como consultório médico, e foi aqui que muita gente viu um médico pela primeira vez na vida. Ao almoço chegavam estudantes e médicos e durante algum tempo um escritor, José Saramago. Mariana Besuga, já viúva, recorda o marido com saudade quando nos diz que apenas seguiam o sonho: «Enquanto houver Reforma Agrária, há sempre mais um prato à nossa mesa!»
Amigos somos, João Besuga, amigos de uma amizade que certa gente em Portugal tudo fez para que não existisse: a amizade que, com uma simplicidade que a essa gente tira o sono, liga o intelectual e o trabalhador, o escritor que em Lisboa vive e o operário agrícola nascido, criado e amargado no Alentejo, o eu que nós somos aqui, o tu multiplicado em rostos de homens e mulheres, firmeza vossa e nossa aprendizagem. Durante quase dois meses me sentei à tua mesa, comi do que tu comias, o pão e a azeitona, o peixe do rio, o porco, a açorda e as migas. Falámos, muito, mas não tudo, porque dois meses é nada e incrivelmente longa a história dos vossos trabalhos. Contigo, com a Mariana Amália, tua mulher, com os teus filhos, aprendi ou confirmei duas ou três coisas fundamentais: o parentesco essencial de quem não tem laços comuns de sangue, e também que na partilha da inteligência nem sempre o melhor quinhão cabe aos que têm ofício de utilizá-la e dessa utilização tiram proveito: debaixo do teu tecto vivem alguns dos espíritos mais agudos que alguma vez conheci.
(Saramago, Recado para João Besuga, alentejano, in Serra, 2010)
José Saramago nunca esqueceu a vila de Lavre e sempre cultivou a sua amizade com Mariana Besuga. Mariana recorda com pormenor o dia em que conheceu aquele escritor português que viria a ser Nobel da Literatura.
“E naquele dia tinha ido ali receber o dinheirito, vieram os dois. Aquela porta estava aberta e a mesa estava posta. Só não estava prato para o Saramago porque eu não sabia. E o meu marido disse: «Ó mulher, trago aqui um camarada, que a gente vai saber muita coisa.» Coitado… E então ele disse: «Eu quero lavar as mãos.» Lá o encaminhámos para ele lavar as mãos. «E então o comer, digam-me lá o comer, o que é?», «Olha, é um cozido», disse eu. «É um cozido», «E tem favas?», «Não, não, favas não tem.», «É porque eu favas não gosto. Gosto de tudo menos de favas», «Então, está bem. Não tem favas.»” (Besuga, 2019).
A Mariana é aqui aquela que de certa forma representa para mim o Lavre. O Lavre foi a casa da Mariana antes de ter sido todo o Lavre.
(Saramago, 1998)
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Na Rua Bernardino Machado, o viajante vai encontrar o edifício que pertenceu à Cooperativa de Consumo Vento de Leste, atualmente propriedade privada. Foi nesta Cooperativa que José Saramago se instalou, aquando da sua estadia na vila de Lavre, entre 18 de março e 2 de maio de 1976. A Cooperativa recebeu o escritor no espírito próprio da Reforma Agrária, que sempre dava condições a quem as não tinha para trabalhar. Lavre teve um papel exemplar na Reforma Agrária e por isso atraiu muitas pessoas. E todos vieram para colaborar, como foi o caso dos médicos e dos estudantes e, de uma forma que diremos eterna, o caso do escritor José Saramago, que levou as vozes da luta do Alentejo para o mundo, naquela que é a primeira grande obra literária do Nobel da Literatura.
Após a tentativa do golpe militar de 25 de novembro de 1975, a qual resultou no fim do Processo Revolucionário em Curso, sendo substituído pelo Processo Constitucional em Curso, o jornal Diário de Notícias encerra. E após oito meses a trabalhar no jornal como diretor adjunto, José Saramago fica desempregado.
Durante as semanas seguintes, durante os meses, nem uma única voz, tanto de próximos como de distantes, acudiu a querer saber se eu, por casualidade, precisava de alguma coisa. Engoli a desfeita e em pouco tempo tinha tomado duas decisões: a primeira, não procurar um emprego que, queimado como ficara pelas lides políticas em que me meti, ninguém teria coragem de me dar, a segunda, perguntar para o Lavre se haveria por lá uma cama onde dormir e um canto para trabalhar num livro que pensava escrever. A resposta veio na volta do correio: que fosse quando quisesse, que tudo se haveria de arranjar. E arranjou-se. Ao cabo de algumas semanas, creio que logo nos princípios de Março, já eu me encontrava instalado no Lavre, numa espaçosa divisão da casa do fugido latifundiário da terra (os outros quartos estavam ocupados por famílias necessitadas), com janela para um grande pátio interior, uma cama bastante confortável, uma pequena mesa onde o Hermes Média esperava a diligência dos meus dedos, o livro cuja tradução me propusera adiantar nos intervalos das minhas indagações, um dicionário de francês-português.
(Saramago, in prefácio, Serra, 2010)
Durante o período em que José Saramago esteve em Lavre, Joaquim Vinagre tinha quinze anos e o seu pai, António Vinagre, Presidente da Cooperativa de Consumo Vento de Leste, pedia que o filho acompanhasse o escritor nas suas deambulações pela vila e pelos campos. António Vinagre conta-nos como conheceu o escritor.
“O meu pai, na altura, trabalhava ali na Cooperativa de Consumo, era o gerente, e era uma pessoa que estava sempre ali em cima do acontecimento. E ele, como estava a viver por cima, a cooperativa era em baixo e ele vivia no primeiro andar, ele, qualquer informação, era com o meu pai. Era a pessoa, durante o dia, não havia mais ninguém com quem ele contactava. E o meu pai ia-lhe dando as informações que sabia. Muitas das vezes, o meu pai também me dizia: «Olha, o Saramago precisa de companhia. Vai com ele.»” (Vinagre, 2018)
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O viajante segue pela Rua Bernardino Machado até ao Largo da Igreja. Depois continua pela Rua Machado dos Santos e a meio depara-se com a Casa de Leitura José Saramago, que funciona como um pólo da Biblioteca Municipal de Montemor-o-Novo.
A obra Levantado do Chão daria razões suficientes para a homenagem aqui prestada ao escritor, mas a história desta Casa de Leitura revela ainda mais motivos para o desígnio. Antes da estadia em Lavre, José Saramago já tinha visitado a vila, em 1975. Veio em resposta ao desafio de Bernardino Barbas Pires, lançado no Teatro Vasco Santana, em Lisboa, num encontro do Movimento Unitário de Trabalhadores Intelectuais, e que consistiu no apelo à doação de livros para a criação de uma biblioteca em Lavre.
A intervenção foi aplaudidíssima, o advogado agradeceu a fraternal recepção e foi à sua vida. Envergonha-me dizê-lo, mas, das duzentas ou mais pessoas que estariam na sala, foi esta a única que, decorridos alguns dias, meteu na mala do carro umas quantas dezenas de livros cuidadosamente escolhidos em atenção às decerto limitadas luzes dos seus destinatários. Era um fim-de-semana, portanto, desembarcado no Lavre após uma viagem aprazível, não foi fácil encontrar às primeiras uma pessoa autorizada em cujas mãos pudesse deixar o literário presente. Afinal, foi o próprio Bernardino Pires quem apareceu, vindo de um almoço de bacalhau com grão. Estava com ele uma jovem estudante liceal, Maria João Mogarro, que viria a converter-se na mais sólida ponte entre a vila do Lavre e a Rua da Esperança, onde eu então vivia.
(Saramago, in prefácio, Serra, 2010)
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No fim da Rua Miguel Bombarda, junto à Praça da República, o viajante vai encontrar uma pequena habitação com porta verde, onde, em 2019, ainda são visíveis alguns vestígios do funcionamento da mercearia de Maria Saraiva, como o autocolante de publicidade que ainda se encontra colado ao vidro da porta. Maria Saraiva foi quem inspirou José Saramago na criação da personagem «Maria Graniza».
Senhora Graniza, o pessoal está em luta pelas oito horas de trabalho e os patrões não querem vir ao acordo, por isso estamos em greve, venho pedir que espere três ou quatro semanas, assim que voltarmos ao trabalho começaremos a pagar, ninguém lhe ficará a dever nada, é um grande favor que lhe pedimos, e a dona daquele comércio, alta mulher de olhos claros e mirada escura, põe sobre o balcão as mãos e responde, com respeito de mais nova, Senhor João Mau-Tempo, tão certo como esperar eu que se lembrem de mim um dia, está a minha porta aberta, e estas palavras sibilinas estão no carácter da mulher, que tem grandes falas místicas e políticas com os seus fregueses e conta histórias e casos de curas miraculosas e intercessões, de tudo há no latifúndio, não é só nas cidades. João Mau-Tempo foi-se com a boa notícia e Maria Graniza preparou um novo rol de fiados, oxalá todos lhe paguem, como é duas vezes devido.
(Saramago, 2014, p.362)
Os lavrenses ainda se recordam de Maria Saraiva e da sua mercearia que tanta fome saciou em tempos de maior miséria. O seu passado faz com que seja ainda recordada com muito carinho por «mãe dos pobres». Elvira Saraiva, filha de Maria Saraiva, relembra o período em que José Saramago esteve em Lavre, pois visitava-as muitas vezes depois da mercearia fechar, e ficavam à conversa. Elvira recorda que José Saramago colocava muitas questões sobre a vida da sua mãe, mas o que guarda com mais amor é a figura de um homem que ali chegou e que trazia um discurso diferente daquele que aos outros homens ouvia. Era um discurso de consciencialização para a discriminação de género, e Elvira nunca mais esqueceu esse homem que trazia consigo as palavras de mudança e de transformação social.
“Maria Saraiva virou Maria Graniza. Porque ele não pôs o nome próprio das pessoas com quem contactava. Ela tinha a mercearia, a minha mãe. E depois como sabia muito das histórias aí de pessoas, depois ele ia para ali e conversava com ela. Gravava tudo aquilo que ela lhe dizia.
E eu, a ideia que tenho acerca dele é que ele era um senhor. Depois do 25 de Abril, estávamos habituados a homens assim muito rudes e ele tratava as pessoas, as mulheres, com uma subtileza. Ele era subtil. Era uma pessoa que agradava, e de uma educação e uma sabedoria, uma coisa extrema. E depois encantávamo-nos de o ouvir. […] A minha mãe contou-lhe muitas histórias de coisas que aí se passavam e que ele aproveitou também para estar aí no livro.” (Saraiva, 2017)
Em 1998, Manuel Vieira entrevista Maria Saraiva, num artigo que intitulou Maria Saraiva: memórias de sempre, publicado no jornal Folha de Montemor, em janeiro de 1999, onde ela própria recorda o seu amigo José Saramago.
Quando cá esteve, um dia acercou-se de mim e começou a falar comigo. Quando verificou que eu conhecia muito da vida de Lavre, e dos problemas que ao longo dos tempos tinham afligido esta região e todo o Alentejo, as nossas conversas começaram a ser mais assíduas. Falávamos, então, das muitas coisas que assisti de perto e de outras de que tinha conhecimento. (Saraiva, M., 1999).
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Ao virar a esquina surge a Rua Cândido dos Reis e logo se revela aquela que foi a última habitação dos Serra. É uma casa baixa, branca com alizares em azul.
Durante toda a sua vida não fez mais do que ganhar o pão, e não todos os dias, e logo isto lhe arma um nó cego dentro da cabeça, que venha um homem ao mundo sem ter pedido, que passe de frio e fome infantil mais do que a conta, se conta pode haver, que chegando a crescido tenha a fome de redobrar como castigo por ter sido o corpo capaz de aguentar tanto, e depois de maltratado por patrões e feitores, por guardas e guarda, tendo chegado aos quarenta anos disse a sua vontade, vai preso como gado para a feira ou para o matadouro, e tudo na prisão é fazer pouco de um homem, e até a liberdade é uma bofetada, um bocado de pão atirado para o chão, a ver se o levanta. Isto fazemos ao pão quando cai, tomamo-lo na mão, sopramos-lhe de leve como se lhe devolvêssemos o espírito, e depois damos-lhe um beijo, mas não o comerei já, parto-o em quatro bocados, dois maiores, dois mais pequenos, toma lá Amélia, toma lá Gracinda, este para ti, e este para mim, e se alguém perguntar para quem foram os dois pedaços maiores, é menos do que um animal, porque um animal sei eu que saberia.
(Saramago, 2014, p.200-1)
Quando António Serra falou connosco, revelou-nos que viveram noutras habitações em Lavre e que esta foi a última moradia da família. António Serra é também ele a referência empírica de um personagem da obra saramaguiana, o «António Mau-Tempo».
António Mau-Tempo já vai trabalhando, anda de ajuda a guardar porcos, por enquanto não tem idade e braços para volteios de maior substância. O maioral não o trata bem, é o costume destas terras e destes tempos, não nos indignemos por tão pouco. […]
António Mau-Tempo deixou o trabalho onde o tinha, desceu a Monte Lavre, saiu do comboio em Vendas Novas, olhou de fora o quartel onde teria de estar daí a três dias e meteu pernas ao caminho, três léguas são […]
(Saramago, 2014, p.93, 211)
Descobrir, de entre os três filhos do sexo masculino da família Serra, qual seria a referência histórica para o personagem «António Mau-Tempo» não foi tarefa difícil. Bastou que nos contasse um pouco da sua vida para logo se revelar a relação do seu relato autobiográfico com a obra de José Saramago.
“Fiz a minha 4ª classe com onze anos e até aos dezasseis anos fiz de tudo aí no campo. Fui aguadeiro, guardei gado, andei a ceifar… e depois através de um conhecimento de um rapaz amigo que estava já empregado em Lisboa, arranjou-me por lá um emprego e eu fui para Lisboa. Eu, se eu não saísse daqui, a minha sina era a sina do meu pai, a trabalhar e a ser explorado a torto e a direito, por todo o lado. E depois mais tarde fui para a tropa, fui para a Marinha.” (Serra, 2019).
Foi também nesta casa que José Saramago veio ao encontro de João Domingos Serra e a sua família. Neste encontro, João Serra cede as suas memórias biográficas a José Saramago, um documento manuscrito que veio a ser editado em 2010 pela Fundação José Saramago, com o título Uma Família do Alentejo, prefaciado pelo escritor José Saramago. No prefácio, o escritor nomeia aqueles que contribuíram com as suas histórias para o enredo da obra Levantado do Chão, onde destaca o contributo de João Serra.
Encontrei-os, falei com eles, gravei bobinas e bobinas de conversações, tantos anos depois, deverão estar completamente inutilizadas pelos bolores e pela humidade dos Invernos. Esses homens tinham nome, rosto, rugas da idade e do contínuo esforço, as mãos como cepos, diria Raul Brandão. Chamavam-se, uns que eram do Lavre, outros de Montemor, João Besuga […] António Joaquim Cabecinha, Manuel Joaquim Pereira Abelha, Joaquim Augusto Badalinho, Silvestre António Catarro, José Francisco Curraleira, e outros, João Machado, Herculano António Redondo, Mariana Amália Besuga, Maria Saraiva, António Vinagre, Ernesto Pinto Ângelo… E João Domingos Serra, o autor deste pequeno livro agora editado, esse mesmo que tive nas minhas afortunadas mãos, escrito de seu próprio punho e letra.
(Saramago, in prefácio, Serra, 2010)
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Chegamos ao último ponto do Roteiro, a ruína da «Ponte Cava», situada a jusante do moinho, onde trabalhavam os moleiros «Picanço» e «Picança». Na obra de Saramago, este casal presta auxílio à família «Mau-Tempo», salvaguardando-os das más intenções de «Domingos Mau-Tempo» e obrigando-os a partir para outro destino.
Quando Sara da Conceição ouviu dizer que o marido tornara a aparecer em Cortiçadas, arrebanhou os filhos que consigo viviam e, pouco segura da proteção do pai Carranca, recolheu João de caminho e foi esconder-se em casa de uns parentes Picanços que eram moleiros num sítio arredado da povoação meia légua, chamado Ponte Cava. Era esta ponte apenas o que restava dela, um arco partido e grandes pedras no leito da ribeira, mas na represa a montante tomava João Mau-Tempo, com os da sua criação, banho em pelota, e quando de costas na água fitava o céu, tudo nos seus olhos era céu e água.
(Saramago, 2014, p.49-50)
Os moleiros voltarão a surgir na narrativa quando «João Mau-Tempo» passar pelo moinho para ir trabalhar na Herdade da «Pedra Grande» e, mais tarde, na manifestação de 1958 em Montemor-o-Novo. Os moleiros «Picanço» e «Picança» têm como referentes históricos, o José Alvarenga e a Filipa Umbelina e a herdade é uma propriedade privada com o nome Pedrógão. Este capítulo termina com o enforcamento de «Domingos Mau-Tempo» (cf. Saramago, 2014, p.52), e o seu referente histórico, Domingos Serra, nunca se terá suicidado. Segundo as memórias de João Serra tornou-se maltês (cf. Serra, 2010, p.59-60).
O meu plano de trabalho era simples. Antes de mais, conhecer a vila e os seus arredores, a ribeira, a ponte em ruínas a que atribuíam uma origem romana, mas que foi construída no séc. xii, a represa e o moinho, enfim, pôr a mão em cima das coisas como me habituei a dizer, depois descobrir aqueles que dariam conteúdo e substância ao futuro livro, na maior parte camponeses da vida revolucionária obscura, mas com um cabedal único de experiências.
(Saramago, in prefácio Serra, 2010)
José Saramago fez várias vezes este percurso até à Ponte Cava. Por vezes vinha só, outras acompanhava-o o jovem Joaquim Vinagre.
Ele, quando aqui chegou, penso que o senhor Barbas Pires lhe deu essas informações, seria talvez um local bom para ele começar a elaborar o livro. E, também, aqui seria uma passagem, muitas dessas pessoas, muitas das vezes perseguidos pela PIDE, e aqui seria o caminho que tinham para essas herdades, Pedrógão, Lobeira, até mesmo Arneiros, Vale da Bica, também dá acesso. E pronto, depois haviam esses senhores, como o senhor Cabecinha e outros mais, que lhe deram informações do que passaram na clandestinidade, reuniões que tiveram. Depois haviam aquelas pequenas informaçõezinhas, que apareciam nos caminhos. Aqui, onde nós estamos, sei que apareciam, o senhor Cabecinha houve uma altura em que falou muito disso. Eu sei que ele tomou isso muito em conta, e anotava isso. (Vinagre, 2018).
José Saramago trazia sempre consigo um rádio gravador e um bloco de notas, pronto a captar a vida neste cruzamento, um dos locais onde se podiam encontrar os jornais clandestinos ou outros panfletos de mobilização para a luta reivindicativa e revolucionária durante a ditadura de Salazar. Em 1976, este lugar era muito movimentado pois dava acesso a muitas herdades das Unidades Coletivas de Produção, que tinham um grande número de trabalhadores rurais. Aqui, na Ponte Cava, o escritor aguardava ouvir as histórias do povo alentejano, para que ele mesmo as pudesse vir a contar ao mundo em toda a beleza literária e profundidade humana de Levantado do Chão.
A ruína da Ponte Cava, sabia-o José Saramago, é um lugar de encontros, de inspiração e, sobretudo, de luta. Por isso, este é um lugar que esperemos vir a propiciar muitos encontros e muita inspiração àqueles que hão de continuar a lutar por um mundo mais justo, mais fraterno, mais livre.
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