Montemor-o-Novo
Germano Vidigal e José Adelino dos Santos

Montemor-o-Novo

A cidade de Montemor-o-Novo tem origem no seu castelo, local da primitiva urbe. As primeiras referências escritas ao local datam de 1181. No entanto, só em 1201 é definitivamente conquistado para a coroa portuguesa por D. Sancho I, que lhe vem a conceder o primeiro foral em 1203. Este documento foi renovado por D. Manuel I em 1503. A importância desta povoação é novamente reconhecida por D. Sebastião em 1563, altura em que lhe concede o título de Vila Notável.
Montemor-o-Novo teve um importante papel no combate à invasão castelhana em 1580 e manteve esta atitude de resistência durante a primeira invasão francesa, comandada por Junot, em 1808. Durante a guerra civil (1832-1834), a cidade acolheu o estado maior do exército liberal, comandado pelo Duque de Saldanha. Já no séc. XX, os montemorenses tiveram uma atitude de resistência e combate ao regime ditatorial de Salazar, que é relembrada por José Saramago na obra Levantado do Chão. Por fim, em 1988, ascende a cidade por concessão da Assembleia da República.

O Percurso Pedestre Germano Vidigal e José Adelino dos Santos visita os locais mais expressivos das tragédias dos assassinatos de Germano Vidigal e de José Adelino dos Santos, os dois únicos personagens da obra Levantado do Chão que mantêm o nome original, e os dois a quem José Saramago dedica a sua obra desde a primeira edição.
No concelho de Montemor-o-Novo, ao longo dos quarenta e oito anos da ditadura fascista, foram presos, torturados e perseguidos centenas de trabalhadores, maioritariamente militantes do PCP, mas também outros democratas, e foram assassinados dois militantes do PCP, Germano Vidigal, a 20 de maio de 1945, e José Adelino dos Santos, a 23 de junho de 1958.

Designação:
Percurso Pedestre

Nome:
Germano Vidigal e José Adelino dos Santos

Coordenadas:
38°38’38”N 8°12’38”W (Rua do Matadouro, início de Percurso)

Freguesia:
União das Freguesias de Nossa Senhora da Vila, Nossa Senhora do Bispo e Silveiras

Concelhos:
Montemor-o-Novo

Acessos:
Rua do Matadouro – Largo Prof. Dr. Banha de Andrade – Rua D. Sancho I – Rua Dom Vasco – Rua da Condessa de Valença – Rua do Quebra Costas – Rua Germano Santos Vidigal – Largo Joaquim Pedro Matos – Terreiro de São João de Deus – Rua Teófilo de Braga – Largo dos Paços do Concelho – Largo Alexandre Herculano – Rua do Passo – Rua 5 de Outubro – Rua de Aviz – Avenida Gago Coutinho – Rua de São Francisco
Para o Percurso temático 2: Montemor-o-Novo – EN114 – Évora

Tipo:
Pedestre

Distância:
2,5 Km

Duração média:
3 horas

Tipo de caminho:
Urbano

Sinalizado:
Sim

Proprietários:
Caminhos públicos

Contactos úteis:
Câmara Municipal 266 898 100 Posto de Turismo 266 898 103
Arquivo Municipal 266 898 100

Contactos de emergência:
GNR: 266 898 050
Bombeiros 266 899 180
Centro de Saúde: 266 898 900

Montemor-o-Novo

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Levantados deste chão - Montemor-o-Novo
Praça de Touros

Praça de Touros

Junto à Rua do Matadouro, no antigo Rossio, o viajante encontra a Praça de Touros.

Foi nesta praça que foram encarcerados os cerca de mil e quinhentos trabalhadores rurais que participavam nas manifestações de 20 de maio de 1945. Entre a multidão, estava Germano dos Santos Vidigal (1913-1945), presidente do Sindicato da Construção Civil e dirigente da organização comunista local, que foi escolhido para dar o exemplo extremo da brutalidade da repressão fascista, sendo assassinado depois de dezassete dias de tortura.

A gente vai falando para passar o tempo, ou para não deixar que ele passe, é um modo de pôr-lhe a mão no peito e dizer, ou suplicar, Não andes, não te movas, se dás esse passo pisas-me, que mal é que eu te fiz. É também como baixar-me, pôr a mão na terra e dizer-lhe, Para, não gires, ainda quero ver o sol. Está-se nisto, neste jogar as palavras umas para cima das outras, a ver se nascem diferentes, e ninguém reparou que o neto desceu à praça e procura um homem, um só neste momento, que não é sequer leão de foice nem veio de longe, e esse homem, se lhe dessem um caderno para escrever o que sabe, e, como virão a fazer no dia seguinte os quatro de Monte Lavre, Escoural, Safira e Torre da Gadanha, pusesse na primeira linha dele ou em todas, para não haver dúvidas e não mudar uma pessoa de ideias de página para página, se pusesse o seu nome, digo, escreveria Germano dos Santos Vidigal por inteiro. Já o encontraram. Levam-no dois guardas, para onde quer que nos voltemos não se vê outra coisa, levam-no da praça, à saída da porta do setor seis juntam-se mais dois, e agora parece mesmo de propósito, é tudo a subir, como se estivéssemos a ver uma fita sobre a vida de Cristo, lá em cima é o calvário, estes são os centuriões de bota rija e guerreiro suor, levam as lanças engatilhadas, está um calor de sufocar, alto.

(Saramago, 2014, p.174-5)

O assassinato de Germano Vidigal, no ano de 1945, surge no rescaldo da grande agitação social vivida na época da Segunda Guerra Mundial, provocada pela forte crise económica que assolou o país. O povo e os trabalhadores portugueses viviam privados dos bens mais básicos como o pão ou o toucinho, que eram enviados em enormes quantidades pelo governo de Salazar para alimentar as tropas nazis. Esta crise severa levou à intensificação da revolta popular que, desde a década de 40, assume contornos políticos revolucionários. Para tal, muito contribuiu a reorganização do Partido Comunista Português em 1940-1, o qual exerceu uma grande influência sobre a classe trabalhadora na consciencialização e na reivindicação, através da imprensa clandestina, como O Camponês ou o Avante – que passaram a ter uma publicação regular a partir de então –, entre outras pequenas publicações. Contribuíram, também, a estação clandestina Rádio Moscovo, que desde 1930 passou a realizar as suas transmissões em língua portuguesa, e, sobretudo, os encontros clandestinos que promoviam a organização e mobilização das massas para a luta reivindicativa.

A vitória dos Aliados sobre o regime nazi-fascista trouxe algum alento ao povo, que se manifestou aos milhares pelas vilas e aldeias, em marchas da fome. Em Montemor-o-Novo, recordemos, a título de exemplo, uma concentração de setecentos camponeses que reivindicavam melhores salários, pão e toucinho, junto à Casa do Povo, em abril de 1945. A 20 de maio do mesmo ano, mais de dois mil trabalhadores entregam um caderno reivindicativo, junto à Casa do Povo e Grémio da Lavoura. A repressão do regime à crescente resistência dos trabalhadores do concelho não se fez tardar. No dia seguinte, cerca de mil e quinhentos homens e mulheres foram presos na Praça de Touros de Montemor-o-Novo. (cf. Fonseca, 1987, p.93).

António Gervásio, um montemorense que em 1945 aderira ao PCP, recorda, numa brochura intitulada A História do Nascimento do PCP em Montemor-o-Novo, o plenário de trabalhadores convocado pelo partido em maio desse ano, em que se encontraram mais de 30 trabalhadores durante a noite, num descampado perto de Nossa Senhora da Visitação. Esta ação mobilizou mais de mil pessoas que reclamaram pão e trabalho, junto ao posto da GNR. O comandante do posto, o tenente Pessoa, sugeriu que os manifestantes se deslocassem à Praça de Touros para melhor dialogarem e estes, segundo Gervásio, foram sem oposição. Uma vez lá dentro foram trancados e já não puderam sair, havia sido um embuste daquele tenente. (cf. Gervásio, 2013).

Praça de Touros

R. do Matadouro 6, 7050-225 Montemor-o-Novo
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Levantados deste chão - Montemor-o-Novo
Centro de Etnologia – Museu Local

Centro de Etnologia – Museu Local

O viajante segue o percurso pedestre pela Rua do Matadouro e à direita toma a Rua D. Sancho I. Depois contorna o Largo Dr. Banha de Andrade até encontrar o Centro de Etnologia – Museu Local de Montemor-o-Novo.

Fazendo uma pausa no trágico caminho de Germano Vidigal, o viajante é convidado a entrar no tempo histórico da obra, podendo ver reunidos, no mesmo espaço, uma mostra do património cultural material e imaterial do povo alentejano no séc. XX, como as ferramentas dos trabalhos rurais, respeitantes a algumas profissões já extintas ou em vias de extinção. Este património foi recolhido pelo Rancho Folclórico e Etnográfico Montemorense e Ranchos Folclóricos do Ciborro, Cortiçadas de Lavre e Foros de Vale Figueira.

Que os trabalhos de homem são muitos. Já ficaram ditos alguns e outros agora se acrescentam para ilustração geral, que as pessoas da cidade cuidam, em sua ignorância, que tudo é semear e colher, pois muito enganadas vivem se não aprenderem a dizer as palavras todas e a entender o que elas são, ceifar, carregar molhos, gadanhar, debulhar à máquina ou a sangue, malhar o centeio, tapar palheiro, enfardar a palha ou o feno, malhar o milho, desmontar, espalhar o adubo, semear cereais, lavrar, cortar, arrotear, cavar o milho, tapar as craveiras, podar, argolar, rabocar, escavar, montear, abrir as covatas para estrume ou bacelo, abrir valas, enxertar as vinhas, tapar a enxertia, sulfatar, carregar as uvas, trabalhar nas adegas, trabalhar nas hortas, cavar a terra para os legumes, varejar a azeitona, trabalhar nos lagares de azeite, tirar cortiça, tosquiar o gado, trabalhar em poços, trabalhar em brocas e barrancos, chacotar a lenha, rechegar, enfornar, terrear, empoar e ensacar, o que aqui vai, santo Deus, de palavras, tão bonitas, tão de enriquecer os léxicos, bem-aventurados os que trabalham, e que faria então se nos puséssemos a explicar como se faz cada trabalho e em que época, os instrumentos, os apeiros, e se é obra para homem ou para mulher e porquê.

(Saramago, 2014, p.95-6)

Centro de Etnologia – Museu Local

Largo Prof. Dr. Banha de Andrade 3, 7050-111 Montemor-o-Novo
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Levantados deste chão - Montemor-o-Novo
Posto da GNR

Posto da GNR

No Largo Prof. Dr. Banha de Andrade, de frente para o Castelo, o viajante atravessa a Rua de São Domingos e entra na Rua D. Vasco, onde vai encontrar o Posto da Guarda Nacional Republicana.

No dia 23 de maio, Germano Vidigal é levado para o posto da GNR de Montemor-o-Novo, onde acaba por falecer a 9 de junho, vítima de um cruel e bárbaro assassinato levado a cabo por dois agentes da PIDE, conhecidos pelo terror e barbárie dos interrogatórios que conduziam, o Barros e o Carrilho (Avante, 2010), a quem José Saramago colocou os nomes de «Escarro» e «Escarrilho». Germano Vidigal não denunciou nenhum dos seus camaradas, manteve-se firme e íntegro até ao último momento da sua curta vida.

[…] quando voltaram deram com o preso enforcado num arame, tal como agora está, a ponta enrolada naquele prego além, a outra com duas voltas no pescoço de Germano Santos Vidigal, sim, chama-se Germano Santos Vidigal, é importante para a certidão de óbito, tem de se chamar o delegado de saúde, e está de joelhos como veem, sim, de joelhos, não há que estranhar, quando alguém quer enforcar-se, até mesmo na barra da cama, a questão é querer, alguém tem dúvidas, Eu não, é o que diz o tenente, e o sargento, e o cabo, e as duas praças e os três presos, que por causa desta sorte serão provavelmente postos em liberdade ainda hoje. Lavra grande indignação entre as formigas, que assistiram a tudo, ora umas, ora outras, mas entretanto juntaram-se e juntaram o que viram, têm a verdade inteira, até a formiga maior, que foi a última a ver-lhe o rosto, em grande plano, como uma gigantesca paisagem, e é sabido que as paisagens morrem porque as matam, não porque se suicidem. Já levaram o corpo. Escarro e Escarrilho arrumam a ferramenta do ofício, o cacete, o vergalho, esfregam os nós dos dedos, inspecionam biqueiras e tacões, não fosse ter ficado agarrado fio de roupa ou mancha de sangue que denuncie aos olhos agudíssimos do detetive Sherlock Holmes a fraqueza do álibi e o desencontro das horas, mas não há perigo, Holmes está morto e enterrado, tão morto como Germano Santos Vidigal, tão enterrado como não tarda que este esteja, e sobre estes casos hão de passar os anos e há de pesar o silêncio até que as formigas tomem o dom da palavra e digam a verdade, toda a verdade e só a verdade.

(Saramago, 2014, p.185)

A versão oficial da morte de Germano Vidigal consiste no suicídio por enforcamento, mas na obra de José Saramago o leitor vai encontrar uma versão que, apesar de se tratar de uma narrativa ficcional, é muito mais próxima dos depoimentos orais.

João Machado, um trabalhador montemorense e membro do PCP desde 1943, também foi preso neste arrastão da PIDE. E, através dos documentos expostos na exposição A Semente e os Frutos, podemos afirmar que João Machado foi um dos testemunhos a que José Saramago recorreu para se informar sobre a tragédia de Germano Vidigal. Vejamos um excerto do testemunho que dele guardou José Saramago, retirado desta exposição.

“Quando foi da morte do Germano Vidigal, o médico que era nessa altura subdelegado de saúde, o dr. Romão, esse homem disse-me a mim que ele é que se tinha enforcado. E eu disse-lhe: «O sr. dr. sabe melhor que ninguém que o homem foi morto de uma forma brutal e criminosa.», «Pois, pois, ó João, mas isso não se pode dizer.», «Não pode o senhor, mas eu posso. E o sr., como um doutor, como delegado de saúde tem grande responsabilidade nisso.», «Mas eu não posso. E tu tem cuidado.», «Só se o senhor doutor for dizer.», «Ah, eu não, mas tem cuidado que ainda podes ir outra vez preso.»” (Machado, 1977).

Falámos com a filha de João Machado, Margarida Machado, sobre as memórias que guarda dos encontros entre o seu pai e José Saramago e a importância desta obra literária para a memória destes acontecimentos.

“Foi feito pelo José Saramago, mas eram as histórias deles que lá estavam. A história de luta, de resistência do povo em Montemor-o-Novo. Isso deu-lhes uma grande alegria, de ficar para as gerações futuras. [O Prémio Nobel] Era o reconhecimento a quem escreveu, ao escritor, mas de alguma forma também às vidas que se viveram e ao povo de Montemor-o-Novo. Sentiram isso também dessa forma. E aquela amizade que foi criada, quando ele regressou à terra, também Saramago ficou alegre de rever aqueles com quem privou durante muito tempo. Daí aquele encontro em que estão os dois com uma expressão muito feliz, tanto João Machado quanto José Saramago.” (Machado, 2019).

Posto da GNR

R. Dom Vasco 42, 7050-226 Montemor-o-Novo
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Levantados deste chão - Montemor-o-Novo
Castelo

Castelo

O viajante percorre o caminho até ao castelo seguindo pelas ruas D. Vasco e Condessa de Valenças, numa subida acentuada. A entrada para o castelo é pela Porta da Vila, junto à Torre do Relógio, e sobe-se até às muralhas. Do alto, desvia o olhar em direção à Câmara Municipal, no Largo dos Paços do Concelho, onde José Adelino dos Santos é assassinado pela GNR a 23 de junho de 1958.

Estavam presentes cerca de trezentos trabalhadores na manifestação, reivindicando melhores salários e mostrando o seu descontentamento perante as recentes eleições fraudulentas de 8 de junho de 1958 à Presidência da República, em que o «general sem medo», Humberto Delgado, saiu derrotado, apesar do enorme apoio que recolhia entre os portugueses, e nos alentejanos em particular.

Aqui do alto se vê como por travessas vão confluindo para o largo da câmara. Parecem formigas, diz uma criança herdeira imaginosa, e o pai retifica, Parecem formigas, mas são cães, ora aqui está como tudo se compõe e explica nesta curta e clara frase, e então há um silêncio, não se pode agora perder nada do que aconteça, olha como já está em frente da câmara um pelotão de soldados da guarda, viva a guarda, e aquele é o sargento, que tem ele na mão, é uma metralhadora, pensou também Gracinda Mau-Tempo, e levantando os olhos viu o castelo cheio de gente, quem será. Encheu-se o largo. Os de Monte Lavre estão juntos, Gracinda única mulher, seu homem Manuel Espada, seu irmão e seu pai António e João Mau-Tempo, e Sigismundo Canastro que diz, A gente não se separa, e também estão dois que se chamam José, um que é Picanço e bisneto dos Picanços moleiros da Ponte Cava, e outro Medronho, de quem nunca foi preciso falar até agora. Estão num mar de gente, dá o sol neste mar e arde como uma cataplasma de ortigas, no castelo abrem-se sombrinhas, é uma festa. […] Já os gritos começaram, Queremos trabalho, queremos trabalho, queremos trabalho, não dizem muito mais do que isto, só daqui e dalém um insulto, ladrões, e tão baixo como se de os haver se envergonhasse quem o lança, e há quem grite, Eleições livres, agora que adianta, mas o grande clamor sobe e abafa todo o resto, Queremos trabalho, queremos trabalho, que mundo este haver quem de descansar faça ofício e quem trabalho não tenha, mesmo pedindo.

(Saramago, 2014, p.330-331)

José dos Santos nasceu em 1912, era conhecido pelo nome próprio do pai, Adelino, foi um militante comunista, preso duas vezes pela PIDE, em 1945 e 1947, e assassinado a 23 de junho de 1958. O eco de revolta da sua morte verificou-se de norte a sul, gerando um clima de contestação a nível nacional perante um crime que, segundo Teresa Fonseca, foi premeditado (cf. Fonseca, 2008). José dos Santos era um homem muito admirado entre os montemorenses, como testemunham as palavras do seu amigo e camarada José Salgueiro. “Como ele no Partido só havia o João Machado. Eram os dois inteligentes mas para mim ele sobressaía um pouco na visão porque há pessoas que são militantes e são fanáticas e ele não o era. Era assíduo militante do Partido mas, na vida particular, era fora de série, como nunca vi!” (André, 2017, p.39).

Na manhã do dia 23 de junho de 1958, José dos Santos, António Farrica, António Malhão, João Machado, entre outros, percorreram as zonas limítrofes da vila em ações de mobilização junto do povo trabalhador, para a jornada reivindicativa e contestatária dessa mesma tarde. António Farrica e João Machado são presos pela GNR, e João Machado é violentamente agredido. Nem estes acontecimentos, nem o facto de também ter sido intercetado e ameaçado pela GNR nessa manhã, demoveram José dos Santos de participar na concentração do povo trabalhador.

Neste ponto de interesse interpretativo, lembramos ainda o papel de «Gracinda, única mulher» de Lavre na manifestação. Se em «João Mau-Tempo» o percurso da resignação à luta reivindicativa e revolucionária ocorre numa só pessoa, este mesmo percurso é feito no feminino através de três gerações. A resignação de «Sara da Conceição», remetida ao silêncio, pouco se transforma com «Faustina Mau-Tempo», embora já possamos encontrar nesta personagem uma atitude protestária que vai para além do silêncio, mas é com «Gracinda» que a mulher passa a ter voz ativa na luta social. Do silêncio ao grito revolucionário passam três gerações, é ela, como dirá «João Mau-Tempo» a “filha levantada”. (Saramago, 2014, p.202)

Castelo

Montemor-o-Novo
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Levantados deste chão - Montemor-o-Novo
Centro Interpretativo Levantado do Chão

Centro Interpretativo Levantado do Chão

Em fase de implementação

Enquanto contempla o vasto horizonte, o viajante desce a Rua do Quebra Costas e a Rua Germano Santos Vidigal, onde, ao fundo da rua à direita, aquela que é hoje uma residência particular foi durante décadas a oficina de latoaria onde trabalhava Germano Vidigal. Retoma o percurso pela esquerda no Largo Joaquim Pedro Matos e vira de novo à esquerda para o Terreiro de São João de Deus, o patrono da Cidade de Montemor-o-Novo. Junto à Igreja Matriz, no antigo convento de São João de Deus, um edifício setecentista recuperado pelo Município, situam-se a Biblioteca Municipal e a Galeria Municipal, assim como o recente Centro Interpretativo Levantado do Chão.
Este espaço disponibiliza ao viajante uma experiência única através dos diferentes dispositivos tecnológicos de caráter lúdico e pedagógico que abordam o contexto da obra de José Saramago, no que respeita aos aspetos históricos e etnográficos do concelho de Montemor-o-Novo.

Centro Interpretativo Levantado do Chão

Terreiro de São João de Deus 5, 7050-213 Montemor-o-Novo
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Levantados deste chão - Montemor-o-Novo
Câmara Municipal

Câmara Municipal

Depois da visita ao Centro Interpretativo Levantado do Chão, o viajante desce a Rua Teófilo Braga até ao Largo dos Paços do Concelho, onde se situa o edifício da Câmara Municipal. Na lateral do mesmo encontra-se um monumento em homenagem a José Adelino dos Santos.

A 23 de junho de 1958, o Presidente da Câmara Municipal, José Nunes Vacas, recusou receber os trabalhadores que pretendiam discutir medidas que pudessem combater o elevado custo de vida, o qual se traduzia em fome e miséria para a população trabalhadora. Ao invés do diálogo, recorre à PIDE e à GNR, que respondem com um contingente reforçado por agentes de Évora e de Vendas Novas.

Esta foi a carga do vinte e três de Junho, fixai bem a data na memória, meus meninos, ainda que muitas outras exornem a história do latifúndio, tão gloriosas por iguais ou semelhantes razões. Também aqui se ilustrou a infantaria e em especial o dela sargento Armamento, homem de uma fé cega e de uma lei errada, lá vai a primeira rajada de metralhadora, e outra, ambas para o ar, de aviso, e quando no castelo se ouvem os tiros é uma alegria de palmas e vivas, todos aplaudem, as suaves meninas do latifúndio coradas do calor e da emoção sanguinária, e os pais, as mães, e a ala dos namorados frementes da vontade de fazer uma surtida, saírem pela porta da Vila, de lança e montante, e acabarem a obra começada, Matem-nos a todos. A terceira rajada é de pontaria baixa, agora se verá o proveito dos treinos de tiro ao alvo, deixa levantar o fumo, não foi mau, embora pudesse ser melhor, estão três no chão, e agora há um que se levanta agarrado ao braço, teve sorte, e outro rasteja aflito, arrasta uma perna, e aquele ali não se mexe, É o José Adelino dos Santos, é o José Adelino, diz um que é de Montemor e o conhece. Está morto José Adelino dos Santos, apanhou com uma bala na cabeça e primeiro nem acreditou, sacudiu a cabeça como se lhe tivesse mordido um bicho, mas depois compreendeu, Ah malandros que me mataram, e caiu de costas, desamparado, não tinha ali a mulher que o ajudasse, fez-lhe o sangue uma almofada debaixo da cabeça, uma almofada vermelha, muito obrigado. Tornam a aplaudir no castelo, adivinham que desta vez foi a sério, e a cavalaria carrega, dispersa o povinho, é preciso recolher o corpo, ninguém se aproxime.

(Saramago, 2014, p.332-3)

A cavalaria da GNR entra no edifício da Câmara Municipal e expulsa violentamente os manifestantes. Na rua ouvem-se tiros disparados de dentro do edifício. José Adelino dos Santos cai baleado e morre, assassinado pelo regime. O sentimento de revolta e de inconformação dos presentes pode ver-se nos gestos de um só homem, António Piteira. “Com as mãos cheias do sangue do amigo, improvisou, num estado de profunda exaltação, um verdadeiro comício, expressando a sua revolta contra a ditadura e a tragédia que acabara de suceder. E perante as insistentes ordens policiais para se calar, respondia, em tom de desafio, que o matassem também.” (Fonseca, 2008, p.219).

O próprio funeral de José Adelino esteve envolto em grande controvérsia, também ela narrada por José Saramago. Recordemos um excerto da conversa entre os personagens «Leandro Leandres» e o doutor «Cordo».

Veja lá o que faz, se não o leva, será pior para si, e o médico responde, Faça o que quiser, eu não levo um homem morto, e dito isto retirou-se, foi tratar de feridos que feridos eram, e não faltavam, alguns foram dali para a prisão, entre eles e os sãos passou duma centena, e se José Adelino dos Santos acabou mesmo por ser levado para Lisboa, foi comédia da pide, fingimento para fazer de conta que se tinha feito tudo para o salvar, tudo isto são maneiras de escarnecimento, se a José Adelino dos Santos levaram, também levaram outros que por lá ficaram presos, e sofreram, como sofreu João Mau-Tempo e foi contado.

(Saramago, 2014, p.335)

No funeral de José Adelino estavam duas mil e quinhentas pessoas a aguardar o cadáver e trezentos praças da GNR, armados com metralhadoras, cercavam Montemor-o-Novo, criando um clima de enorme tensão. No mês seguinte, o Avante publica a notícia. “O funeral veio acompanhado desde Vendas Novas por uma caravana de dez (jeeps) da GNR, comandados pelo capitão Caldeira, de Évora. Andaram a dar voltas com o corpo para fugirem à multidão que o esperava. Mas a população rompeu os cordões da guarda que barravam o caminho do cemitério e concentrou-se neste em número superior a mil e quinhentas pessoas. O funeral constituiu uma grande manifestação de repulsa contra os assassinos.” (Avante, 1958).

Câmara Municipal

Largo dos Paços do Concelho 8, 7050-127 Montemor-o-Novo
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Levantados deste chão - Montemor-o-Novo
Arquivo Municipal

Arquivo Municipal

O viajante atravessa o Largo Alexandre Herculano e segue pela Rua do Passo, depois, à direita, sobe a Rua 5 de Outubro até à Rua de Aviz, que conduz à Avenida Gago Coutinho. Percorre alguns metros e vira à esquerda na Carreira de São Francisco e logo se depara com o cemitério, à sua direita, onde José Adelino dos Santos se encontra sepultado. Seguindo em frente encontra o Arquivo Histórico Municipal, onde termina este percurso pedestre.

Instalado numa antiga cadeia, o Arquivo preserva e divulga a memória de todo o concelho, com documentos desde o séc. XV à contemporaneidade.

Integrado no Arquivo, encontra-se o CDARA – Centro de Documentação e Arquivo da Reforma Agrária. Este centro revela-se essencial quer para o investigador quer para o leitor curioso sobre o contexto histórico da obra Levantado do Chão. Aqui, poderá dispôr de uma documentação variada sobre os aspetos sociais, económicos e políticos das vidas do povo que tanto motivaram José Saramago. O Arquivo da Reforma Agrária consiste no fundo documental proveniente das antigas unidades coletivas de produção agropecuária de todo o Alentejo e Ribatejo, sindicatos agrícolas, bem como de conferências da Reforma Agrária e outras entidades de apoio a este movimento. Este conjunto documental reunido por iniciativa do município e por oferta dos respetivos detentores, destina-se a salvar do desaparecimento arquivos nos quais poderão ser estudadas as formas de organização, a atividade económica, as relações sociais e outras vertentes do período da Reforma Agrária.

Depois das Mantas vão ao Vale da Canseira, às Relvas, ao Monte da Areia, à Fonte Pouca, à Serralha, à Pedra Grande, em todos os montes e herdades são tomadas as chaves e escritos os inventários, somos trabalhadores, não viemos roubar, afinal nem há aqui ninguém para afirmar o contrário, porque de todos estes lugares percorridos e ocupados, montes, salas, adegas, estábulos, cavalariças, palheiros, malhadas, cantos, cantinhos e escaninhos, pocilgas e capoeiras, cisternas e tanques de rega, nem falando nem cantando, nem calando nem chorando, estão Norbertos e Gilbertos ausentes, para onde foram sabe-se lá. A Guarda não sai do posto, os anjos varrem o céu, é dia de revolução, quantos são.

(Saramago, 2014, p.388)

Para além do Arquivo, o Centro de Documentação reúne diversos materiais desde livros, fotografias, vídeos, cartazes, jornais, entre outros, que documentam a Reforma Agrária. Damos aqui destaque ao recente Arquivo de Entrevistas do Roteiro Literário Levantado do Chão, que permite aprofundar o conhecimento da obra a partir de diferentes perspetivas, desde a biografia, estudos literários, antropologia, ciência política à historiografia local. Destacamos apenas alguma documentação que respeita ao contexto da obra Levantado do Chão e que poderá ter acesso neste espaço de cultura e história.

Arquivo Municipal

Largo de São Francisco 35-27, 7050-118 Montemor-o-Novo