Caminhos há muitos por aqui e todos vão a Montemor
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Levantados deste chão
A repressão no Alentejo durante a ditadura

“Do chão sabemos que se levantam as searas e as árvores, levantam-se os animais que correm os campos ou voam por cima deles, levantam-se os homens e as suas esperanças. Também do chão pode levantar-se um livro, como uma espiga de trigo ou uma flor brava. Ou uma ave. Ou uma bandeira. Enfim, cá estou outra vez a sonhar. Como os homens a quem me dirijo.”

Levantados deste chão

O Percurso “Os Levantados deste Chão – A Repressão da Ditadura no Alentejo” aborda os momentos mais violentos da obra, como as prisões, as torturas e os assassinatos do regime ditatorial sobre o povo alentejano.
A luta do proletariado agrícola no Alentejo do séc. XX foi, como a obra deixa claro, uma luta política. Nas páginas em que José Saramago narra a prisão e as torturas de «João Mau-Tempo», e os assassinatos de Germano Vidigal e de José Adelino Dos Santos, que surgem na obra, de acordo com a referência histórica, enquanto militantes ou dirigentes do Partido Comunista Português, a violência nas palavras é tal que verificamos claramente a intenção do autor em denunciar o terror do regime fascista e os seus mecanismos de repressão contra qualquer forma de oposição ao regime e, sobretudo, contra os militantes do PCP. A razão para este ódio particular, encontramo-la no facto de que os militantes do PCP – fundado em 1921 e proibido ainda na década de 20 – lutaram por mais de cinquenta anos pela consciencialização política dos trabalhadores rurais no Alentejo, sobretudo, através da divulgação de imprensa clandestina, como o jornal Avante, e de encontros clandestinos que promoviam a mobilização organizada da luta reivindicativa e revolucionária. Era sobre estes que recaía a mais violenta repressão, o regime fascista perseguia todos os seus militantes, dirigentes e funcionários, que se viam forçados a viver clandestinamente, sob a ameaça de prisão, tortura e assassinato. E, particularmente no concelho de Montemor-o-Novo, a repressão foi violentíssima, com assassinatos e muitas centenas de presos. A luta no Alentejo, até 1974, foi, portanto, uma luta clandestina e marcada pelo sangue derramado e os sacrifícios incalculáveis que a história não mais poderá esquecer, e, para tanto, muito se deve a esta grande contribuição do escritor português José Saramago.

Designação:
Percurso temático

Nome:
Os Levantados deste Chão

Coordenadas:
38°42’32”N 9°07’57”W
(Casa dos Bicos, início de Percurso Pedestre)

Freguesias:
Santa Maria Maior; União das freguesias de Nossa Senhora da Vila, Nossa Senhora do Bispo e Silveiras

Concelhos:
Lisboa; Montemor-o-Novo

Acessos:
Lisboa – A2, A6 e N4 – Montemor-o-Novo

Tipo:
Rodoviário e Pedestre

Distância:
103 km Rodoviários (+30 km até ao Percurso temático 2)
4 km Pedestres

Duração média:
6 horas

Tipo de caminho:
Urbano

Sinalizado:
Sim

Proprietários:
Caminhos públicos

Lisboa
João Mau-Tempo - Resistência e Liberdade

Lisboa

Lisboa é uma das poucas cidades, a nível mundial, a oferecer um cenário natural único. A presença do rio Tejo acompanha-nos ao longo da visita, na descoberta da frente ribeirinha e respetiva zona portuária, e das ruas cheias de história das suas gentes e acontecimentos mais marcantes que moldaram o “rosto” desta cidade.
Sob um céu quase sempre azul, a luz de Lisboa vai colorindo telhados, ruas, casario, janelas e verdes recantos numa diversidade de tons e cores, que têm sido escolhidos como motivos para filmagens e sessões fotográficas.
Sendo uma cidade construída sobre colinas, dos diversos miradouros, instalados nos pontos mais altos, podem usufruir-se vistas deslumbrantes. Destaque para o do castelo de S. Jorge, donde alcançamos os cacilheiros na sua travessia para a margem sul, a Ponte 25 de Abril, o Rossio, o Convento do Carmo, o Bairro Alto, o Parque Eduardo vii, entre outros pontos da cidade. A par da cidade antiga, com um património bastante rico, Lisboa é também uma cidade moderna que se tem renovado em novas propostas culturais e de lazer. (Câmara Municipal de Lisboa)

O Percurso Pedestre João Mau-Tempo tem início na Fundação José Saramago, onde o viajante é convidado a conhecer a vida e a obra deste autor, e o romance Levantado do Chão em particular. O restante percurso retoma as memórias das prisões e torturas infligidas a «João Mau-Tempo» pelo regime fascista, onde se destaca a visita ao Museu do Aljube. Simultaneamente, o percurso refaz os primeiros passos em liberdade do personagem, depois dos seis meses na prisão de Caxias.
Quando chega a Lisboa, «João Mau-Tempo» é preso durante um dia na prisão do Forte de Caxias, e logo é transferido para a prisão do Aljube. Esteve preso trinta dias no Aljube e seis meses no Forte de Caxias, acusado de praticar ações subversivas contra o regime de Salazar, que consistiam sobretudo na distribuição do jornal clandestino Avante. Foi, como tantos presos políticos, cruelmente torturado, através da tortura da «estátua», de agressões e humilhações.

Designação:
Percurso Pedestre

Nome:
João Mau-Tempo – Resistência e Liberdade

Coordenadas:
38°42’32”N 9°07’57”W
(Casa dos Bicos, início de Percurso Pedestre)

Freguesia:
Santa Maria Maior

Concelhos:
Lisboa

Acessos:
Casa dos Bicos – Rua dos Bacalhoeiros – Arco Porta do Mar – Rua Afonso de Albuquerque – Travessa Almargem – Rua São João da Praça – Beco Quebra Costas – Rua do Barão – Rua Augusto Rosa – Museu do Aljube – Largo Santo António da Sé – Largo Madalena – Rua da Madalena – Rua da Alfândega – Praça do Comércio – Avenida Infante Dom Henrique – Terreiro do Paço

Tipo:
Pedestre

Distância:
1,5 Km

Duração média:
2 horas

Tipo de caminho:
Urbano

Quando visitar:
Todo o ano

Sinalizado:
Sim

Proprietários:
Caminhos públicos

Explorar:
• Aqueduto das Águas Livres;
• Ascensor da Bica;
• Ascensor da Glória;
• Ascensor do Lavra;
• Assembleia da República (Palácio de São Bento);
• Basílica da Estrela;
• Capela de Santo Amaro; Capela de São Jerónimo;
• Ermida do Restelo;
• Capela do Hospital de São José;
• Capela do Paço da Bemposta;
• Capela dos Castros;
• Casa dos Bicos;
• Chafariz da Esperança;
• Convento da Graça;
• Convento dos Paulistas;
• Cordoaria Nacional;
• Cruzeiro das Laranjeiras;
• Cruzeiro de Arroios;
• Edifício do Núcleo Museológico do Posto de Comando do MFA;
• Edifício-Sede e Parque da Fundação Calouste Gulbenkian;
• Elevador de Santa Justa;
• Igreja da Conceição-Velha;
• Igreja da Madalena;
• Igreja da Madre de Deus;
• Igreja da Memória;
• Igreja de Nossa Senhora da Luz;
• Igreja de Santa Catarina;
• Igreja de Santo António de Lisboa;
• Igreja de Santo Estêvão;
• Igreja de São Domingos; Igreja de São Roque;
• Igreja do Menino Deus;
• Igreja do Sagrado Coração de Jesus;
• Igreja e Mosteiro de São Vicente de Fora;
• Mosteiro dos Jerónimos;
• Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros;
• Padrão do Campo Pequeno;
• Palácio Almada-Carvalhais;
• Palácio dos Condes de Almada;
• Palácio Fronteira;
• Palácio Nacional da Ajuda;
• Palácio Nacional de Belém;
• Palácio Vagos/Paços de S. Cristóvão;
• Palácio Vale Flor;
• Panteão Nacional – Igreja de Santa Engrácia;
• Portal da Capela de Nossa Senhora dos Remédios;
• Portal e Galilé da Igreja de Chelas;
• Praça do Comércio (Terreiro do Paço);
• Praça do Município – Pelourinho
• Reservatório da Mãe d’Água das
• Amoreiras;
• Sé de Lisboa;
• Sepulturas da Igreja de Santa Luzia;
• Teatro Nacional de São Carlos;
• Teatro Nacional Dona Maria II;

Contactos úteis:
Câmara Municipal de Lisboa
21 798 8000
Posto de Turismo Lisboa Centro
914081366
www.visitlisboa.com

Onde comer e onde dormir:
Informações em www.cm-lisboa.pt

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Levantados deste chão - Lisboa
Fundação José Saramago

Fundação José Saramago

Junto ao Largo José Saramago, na Rua dos Bacalhoeiros, o viajante encontra a Casa dos Bicos, Sede da Fundação José Saramago desde 2012. Nesta instituição cultural, o viajante pode ver a exposição permanente A Semente e os Frutos, de Fernando Gómez Aguilera, que retrata a vida e obra de José Saramago, onde destacamos o espaço dedicado ao romance Levantado do Chão. Nos expositores, o viajante pode ver a 1ª edição da obra, de 1980, artigos de imprensa, e um conjunto de documentos do escritor relativos à preparação de Levantado do Chão, que vão desde pequenas notas aos testemunhos recolhidos pelo autor no concelho de Montemor-o-Novo. Esta documentação relata o período em que o escritor esteve em Lavre a recolher as histórias do povo alentejano, de 18 de março a 2 de maio de 1976, no período mais longo, tendo depois regressado várias vezes para estadias mais curtas. Abaixo, transcrevemos um excerto da entrevista de Ernesto Sampaio a José Saramago, por ocasião do lançamento da obra Levantado do Chão, a 22 de fevereiro de 1980, que nos dá conta deste encontro entre o escritor e o povo do Alentejo.

O meu primeiro movimento, isto no que toca a perspectivas de produção literária, tinha sido transportar-me para as terras ribatejanas onde nasci, levar a traduçãozinha em estaleiro (por sinal um volumoso tratado de psicologia), e tentar o livro campestre que eu andava a sentir necessidade de escrever. Motivos vários impediram a realização do projecto por aquelas bandas. Além disso, parecia-me errado ir cometer uma espécie de regresso ao ovo natal. Foi então que me ocorreu o contacto que estabelecera, em meados de 1975, com a UCP «Boa Esperança», de Lavre, por causa de uma entrega de livros para a biblioteca que eles andavam a organizar. Escrevi, perguntei se podia ir, como seria isso de comer e dormir, e se havia um lugar onde trabalhar, um espaço para a máquina de escrever. Eles responderam: «Venha.» E eu fui. Estive em Lavre, da primeira vez, dois meses, depois, por intervalos, umas tantas semanas mais, e quando de lá voltei trazia cerca de duas centenas de páginas com notas, casos, histórias, também alguma História, imagens e imaginações, episódios trágicos e burlescos, ou apenas do quotidiano banal, acontecidos diversos, enfim, a safra que é sempre possível recolher quando nos pomos a perguntar e nos dispomos a ouvir, sobretudo se não há pressa. Andei por Lavre, Montemor-o-Novo, Escoural, por lugares de gente e descampados, passei dias inteiros ao ar livre, sozinho ou acompanhado de amigos, conversei com novos e velhos, sempre na mesma cisma: perguntar e ouvir.

(Saramago in Diário de Lisboa, 1980)

A documentação que encontramos nesta exposição permite ao viajante estabelecer alguns paralelismos entre a realidade e a ficção, como acontece com o testemunho de João Besuga, onde o leitor facilmente encontrará mencionado o José Rato, que é referência empírica do personagem «José Gato». Ou o testemunho de João Serra, sendo ele mesmo a referência empírica do personagem «João Mau-Tempo». O viajante encontra ainda outros documentos para a mesma proposta, como uma pequena agenda dividida por ordem alfabética e anotada a esferográfica, onde o leitor pode ver a transposição dos nomes históricos de herdades e lugares para os nomes ficcionados que surgem na obra. Na mesma entrevista de Ernesto Sampaio podemos ainda ler a opinião do autor sobre a relação entre a sua obra literária e o Alentejo, enquanto referência espaço-temporal da narrativa.

Do que o Alentejo foi, creio que o meu livro dará uma ideia. Do que ele é, também este livro saberá dizer alguma coisa. Por exemplo, a repressão violenta, que em nada se distingue dos tempos do fascismo: exprime o mesmo ódio ao trabalhador agrícola. Quanto ao que o Alentejo será, não tenho dúvidas. Será uma terra de mulheres e de homens donos das suas vidas. Quando? Isso não sei dizer. Mas sei que gostaria de ainda poder ver no nosso País a fraternidade de trabalhadores que encontrei junto dos meus amigos do Alentejo. O que ali está em gestação é, em sentido literal, um homem português novo. E a reacção sabe-o. Sabe e teme. Por isso é que são os insultos, os vexames, as agressões e as mortes. É o mundo velho a querer estrangular o mundo novo. No meio de tudo isto, que vem fazer o meu livro? Hoje é um testemunho. Amanhã, faço votos por que seja um simples artefacto arqueológico, fora de uso, ou, quando muito, e não será pouco, um registo para a memória colectiva. Há-de ser possível dizer um dia: «Pensarmos nós que a vida no Alentejo foi assim…» É claro que não posso deixar de exprimir um outro voto, mais egoísta: que mesmo nessa altura, graças a algum valor literário que hoje tenha e então conserve, ainda o «Levantado do Chão» seja lido.

(Saramago in Diário de Lisboa, 1980)

Fundação José Saramago

Rua dos Bacalhoeiros 10, 1100-135 Lisboa
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Levantados deste chão - Lisboa
Museu do Aljube

Museu do Aljube

O viajante continua o Percurso Pedestre João Mau-Tempo pela Rua dos Bacalhoeiros, virando logo à direita, no Arco Porta do Mar. Sobe a Rua Afonso de Albuquerque e a Travessa Almargem, toma a Rua São João da Praça e sobe de novo, agora, a escadaria do Beco Quebra Costas, junto à Sé. No alto das escadas encontra-se a Rua do Barão e uns metros à frente a Rua Augusto Rosa, onde se situa a antiga Prisão do Aljube.

A antiga prisão política é hoje o Museu do Aljube – Resistência e Liberdade. A visita a este espaço permite aproximar do sofrimento do personagem «João Mau-Tempo», bem como de todos os presos políticos que por aqui passaram. Inspirados no epíteto do Museu, cada ponto assinalado do percurso de Lisboa aborda simultaneamente a Resistência e a Liberdade em «João Mau-Tempo».

Resistência
«João Mau-Tempo» é um personagem que simboliza a resistência dos presos políticos durante a ditadura fascista, pela forma como resistiu às torturas sem denunciar nenhum camarada. Antes de ir para Caxias, onde viveu encarcerado cerca de seis meses, esteve trinta dias em isolamento no Aljube. Dentro das pequenas e sombrias celas que ficaram conhecidas como «gavetas», podemos facilmente imaginar o seu sofrimento.

Trinta dias de isolamento é um mês que não pode caber em nenhum calendário. Por mais que se calcule e tire a prova real, são sempre dias de sobra, é uma aritmética inventada por gente doida, põe-se a gente a contar, um, dois, três, vinte e sete, noventa e quatro, e afinal era erro nosso, ainda só passaram seis dias.

(Saramago, 2014, p.259)

Durante estes trinta dias, «João Mau-Tempo» apenas sai do Aljube para a sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, onde se praticavam os interrogatórios com base na tortura, como as setenta e duas horas de estátua (Saramago, 2014, p.264), as ameaças de morte (Saramago, 2014, p.264-5) e as intermináveis ofensas à integridade física e moral.

[…] diz a verdade, comunista, não encubras, se contares a história vais-te embora já amanhã para Monte Lavre, para a companhia dos teus filhos, e João Mau-Tempo, esqueleto de cão marrado contra perdiz, repete, Senhor, a minha história está contada, fui preso em mil novecentos e quarenta e cinco, mas desde essa data nunca mais tive atividades, se alguém disse o contrário, mentiu.

(Saramago, 2014, p.263-4)

O apelido Mau-Tempo, segundo defende David Frier, pode ter a sua origem em Joaquim Mau-Tempo, que se encontra enterrado no cemitério de Montemor-o-Novo, tendo falecido a 25 de abril de 1973. Assim como o personagem homónimo «João Mau-Tempo», também não vive a revolução de 25 de Abril de 1974 (Frier, 2019). E a referência histórica de «João Mau-Tempo» é João Domingos Serra (1905-1982). No processo da PIDE de João Serra podemos ler a seguinte biografia prisional: “Preso por esta Polícia em Montemor-o-Novo em 6-7-949, para averiguações, tendo dado entrada nesta Directoria em 7-7-949 e recolhido ao Depósito de Presos de Caxias (0.5.190/49). Transferido para a Cadeia do Aljube em 8-7-949 (0.5.193/49). Transferido para o Depósito de Presos de Caxias em 8-8-949 (0.5.222/49). Restituído à liberdade em 23-11-949 (0.5.nº331/49).” (Torre do Tombo, 1949).Um dos torturadores de João Serra foi o inspetor Fernando Gouveia, que surge na obra enquanto «inspetor Paveia» (Saramago, 2014, p.255). Este inspetor, um dos mais temidos pelos comunistas, era conhecido pela extrema violência dos seus interrogatórios e foi responsável por colocar na prisão centenas de militantes, dirigentes e funcionários do PCP (cf. Pimentel, 2008).

Liberdade
O viajante sai do Museu do Aljube e desce a Rua Augusto Rosa e o Largo Santo António da Sé. O leitor bem recordado já antecipa que este caminho é o mesmo que repetia «João Mau-Tempo» com destino à antiga sede da PIDE.

Mas este podengo que me leva pelas ruas desertas, linda que está a noite, embora dela só veja este corredor de céu por cima dos prédios, e à esquerda uma igreja Sé, e à direita outra de Santo António pequena, e logo mais abaixo nem pequena nem grande a da Madalena, é um caminho de igrejas, vou sob a proteção da corte celestial, este podengo tem uma conversa mansa, deve ser por isso […]

(Saramago, 2014, p.260-1)

Depois dos seis meses de prisão em Caxias, «João Mau-Tempo» é deixado por um guarda à porta da prisão do Aljube. Pelas pistas da obra, terá virado à esquerda na Igreja da Madalena e tomado a Rua com o mesmo nome.

Era já noite quando a carrinha deixou João Mau-Tempo à porta do Aljube, parece o diabo desta viúva-alegre que não conhece outros caminhos […] então João Mau-Tempo pega no saco e na maleta e desanda rua abaixo, mal pode com os pés, coxeia, tem uma lembrança de que a estação lhe fica para a esquerda, mas cuida que se perderá, por isso pergunta a um homem que passa e ele diz-lhe, Vai em bom caminho […]

(Saramago, 2014, p.276, 278)

Museu do Aljube

R. Augusto Rosa 42, 1100-059 Lisboa
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Levantados deste chão - Lisboa
Praça do Comércio

Praça do Comércio

Do Museu do Aljube, o percurso segue pelas ruas Augusto Rosa e Santo António da Sé. Até ao Largo Madalena, o viajante percorre parte do caminho que repetia «João Mau-Tempo» até à antiga sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso. Contornando o largo e virando à esquerda, na Rua da Madalena, retoma os caminhos de «João Mau-Tempo», agora em liberdade e de regresso a «Monte Lavre». Chega então à Rua da Alfândega e uns poucos metros à direita alcança a Praça do Comércio.

Resistência
Depois de sair do barco, «João Mau-Tempo» segue no meio dos dois guardas que o acompanham até à sede da PIDE, onde aguardará o seu destino na «casa da paciência» (Saramago, 2014, p.254), e passam pela Praça do Comércio.

Passemos também sem observação particular o percurso urbano, os elétricos, a carroça de estrado baixo que por aqui abunda, a gente que passa, qual é a mão direita do cavalo de D. José, atravessam em diagonal, João Mau-Tempo reconhece os sítios, praça tão grande não se pode esquecer, e os arcos, maiores que os do Giraldo […]

(Saramago, 2014, p.253)

Liberdade
Já em liberdade, «João Mau-Tempo» passa de novo na Praça do Comércio, a caminho da Estação do Terreiro do Paço.

Então se não houver barco e comboio, onde é que vai dormir, e João Mau-Tempo responde simplesmente, Passo a noite na estação, há de haver lá um banco, o pior é o frio que faz, mas já estou habituado, muito obrigado pela sua atenção, e tendo dito afasta-se, mas o outro diz, Vou lá consigo, deixe ver o saco, que eu ajudo, e João Mau-Tempo, que dúvida, pois se vem de estar seis meses com homens de humanidade, cuidaram dele, ensinaram-no, deram-lhe tabaco, dinheiro para a viagem, mal parecia que desconfiasse, passou o saco para as mãos do outro, às vezes a cidade tem espetáculos assim, lá vão os dois, descem o que falta de ruas, e depois é o grande terreiro, ao longo das arcadas, e logo a estação […]

(Saramago, 2014, p.278-9)

Como se pode compreender pela obra de José Saramago, a resistência ao fascismo exigiu grandes sacrifícios. A repressão às manifestações sociais era aterrorizante, e a resistência só foi possível prevalecer pela camaradagem, principalmente entre os presos políticos, como José Saramago bem evidencia ao narrar a relação de «João Mau-Tempo» com os outros prisioneiros;

João Mau-Tempo estará aqui vinte e quatro horas. Não terá ocasião para muito conversar, porém no dia seguinte um preso chegará junto dele e começará a dizer, Ouça, amigo, não sabemos por que razão aqui veio parar, mas para seu bem e governo tome nota destes conselhos. […] Tão popular João Mau-Tempo ali se achou, que dando com um companheiro de prisão a fumar lhe pediu um cigarrito, foi um atrevimento, que nem o conhecia de lado nenhum, e logo uns lhe ofereceram tabaco, mas o mais bonito de tudo foi outro que estava de lado a observar a conversa e se aproximou com uma onça de tabaco superior, um livro de mortalhas e uma caixa de fósforos, Camarada, quando precisar de alguma coisa, é dizer, aqui, enquanto houver para um, há para todos, imagine-se como ficaria João Mau-Tempo, com a primeira fumaça cresceu uma mão travessa, com a segunda voltou ao seu natural, mas muito mais fortalecido, ele pequeno no meio dos outros que o viam fumar e sorriam.

(Saramago, 2014, p.257-268)

Do concelho de Montemor-o-Novo, foram muitos os trabalhadores que vieram parar aos calabouços das prisões políticas, sendo João Serra um deles, e era frequente travarem-se grandes amizades nas prisões, como nos relata o seu filho António Serra.

“Em Caxias é que ele conheceu de facto esse indivíduo de Montemor, que se não estou em erro, era qualquer coisa Catarro, que foi um grande amigo dele. Foi um grande amigo dele porque lhe deu a conhecer a forma como se aguentar às torturas sem denunciar ninguém. Não era essa a vontade do meu pai mas as torturas eram tão grandes, a forma como eles o tratavam era tão difícil que ele tinha medo de não aguentar aquelas torturas. E foi esse indivíduo que lhe esclareceu a forma como ele se havia de comportar para não denunciar os camaradas. E era o que lhe distribuía o tabaco, e ficaram a ser grandes amigos.” (Serra, 2019)

Praça do Comércio

Praça do Comércio, 1100-148 Lisboa
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Levantados deste chão - Lisboa
Estação do Terreiro do Paço

Estação do Terreiro do Paço

Dobrando a Praça do Comércio, logo surge a Estação do Terreiro do Paço, onde termina o percurso pedestre de Lisboa. Foi aqui que «João Mau-Tempo» desembarcou «rei de Portugal», como narra Saramago, com a devida escolta policial, e onde também, com as dificuldades de um mendigo, embarcou de regresso a casa.

Resistência
O guarda «José Calmedo» prende «João Mau-Tempo» durante a sua jorna de trabalho. De entre os demais trabalhadores, cuja existência o autor compara à vida rasteira dos insetos rebaixados sobre o chão, o guarda escolhe levar para o posto de «Monte Lavre» “a formiga que levanta a cabeça como os cães” (Saramago, 2014, p.245-6). Dali segue para o posto de Vendas Novas e deste, em novo «passeio», até Lisboa.

Depois foi o barco para o Terreiro do Paço […] Mas João Mau-Tempo, só mais tarde se virá a saber, é filho de rei e único herdeiro do trono, real, real, por João Mau-Tempo rei de Portugal, aí encosta o barco ao pontão, quem ia adormecido acordou, e quando o preso dá por si estão dois homens na sua frente, Então é só este, perguntam, e aquele que veio de acompanhante responde, Desta vez não há mais.

(Saramago, 2014, p.253)

Liberdade
Depois da Praça do Comércio, «João Mau-Tempo» chega finalmente à Estação do Terreiro do Paço, acompanhado por «Ricardo Reis» de Alfama, marido de «Ermelinda», o qual, não se contentando com o espetáculo do mundo, se dispôs a prestar auxílio a «João Mau-Tempo».

João Mau-Tempo tem dificuldade em perceber as tabelas, aqueles minúsculos números, e o homem ajuda, percorre com o dedo as colunas, Não, comboio não há, só amanhã de manhã, e ouvindo isto já João Mau-Tempo está a procurar um sítio onde possa enroscar-se […] O homem é mais velho do que João Mau-Tempo, mas mais forte e mais leve de perna, por isso tem de moderar-se para acompanhar o passo doloroso do ressuscitado, e para o animar diz, Moro aqui perto, em Alfama, e já virou para Rua da Alfândega, cobrou ânimo João Mau-Tempo, depois meteram-se por umas vielas húmidas e escarpadas, húmidas, com este tempo não admira, uma porta, uma escada estreitíssima, uma água-furtada […]

(Saramago, 2014, p.279-0)

Antes de terminar o percurso pedestre de Lisboa, ainda no Terreiro do Paço, o viajante é convidado a recordar que foi também aqui que «Faustina Mau-tempo» desembarcou, para depois apanhar o comboio para Caxias e visitar o seu marido.

Faustina Mau-Tempo descalçou-se, que lhe não estavam os pés habituados ao aperto dos sapatos, e ficou em palmilhas de meias, mas aqui foi uma dor de alma, não teremos coração se com isto nos pusermos a rir, são humilhações que depois ficam a queimar a memória para todo o resto da vida, estava o alcatrão amolecido de tanto calor e logo aos primeiros passos as meias lhe ficaram agarradas, e quanto mais Faustina as puxava, mais elas esticavam, isto é um número de circo, o mais perfeito da temporada, basta, basta, acabou de morrer a mãe do palhaço, e toda a gente chora, o palhaço não faz rir, está espantado, assim nós estamos ao pé de Faustina Mau-Tempo e fazemos biombo para que a companheira dela a ajude a tirar as meias, com recato, que este pudor das mulheres de um homem só é intratável, e agora vai descalça e nós voltamos para casa, e se há algum de nós a sorrir é de ternura.

(Saramago, 2014, p.272)

«Faustina Mau-Tempo» tem como referente histórico Júlia Perpétua de Oliveira. António Serra, seu filho, conta-nos o episódio em que Júlia de Oliveira foi visitar João Serra na prisão de Caxias.

“E então a minha mãe uma altura foi visitá-lo. Pediu dinheiro emprestado. Pediu a um senhor que era o Liberato, que era o feitor da Casa Frade. Ele emprestou-lhe dinheiro e foi lá com a minha irmã, a Maria Perpétua, foi visitá-lo a Caxias e ele era já quase um cadáver. E nós por cá a passar fome. E pronto, a partir daí o João Serra passou a ser sempre o comunista. Tinha alguma dificuldade, só lhe davam mais trabalho porque o meu pai para trabalhar era um mouro de trabalho.” (Serra, 2019)

Estação do Terreiro do Paço

Praça do Comércio, 1100-148 Lisboa