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São Cristóvão é uma povoação muito antiga, pensa-se que terá surgido a partir de um pequeno núcleo de habitações domésticas de características medievais, existentes nas proximidades da atual igreja paroquial da vila. As suas primeiras referências datam do séc. XVI, altura em que foi construída a Igreja Paroquial de S. Cristóvão, um templo com características tardo góticas.
A freguesia de São Cristóvão pertence ao concelho de Montemor-o-Novo, possui uma área de 156,33 Km2, e tem uma população de 540 habitantes (2011).
Primeiros anos do séc. XX — Resignação e Banditismo. Neste ponto abordamos os dois exemplos que «João Mau-Tempo» retira do seu pai «Domingos» e de «José Gato», em São Cristóvão.
A falta de emprego e os elevados custos de vida marcam a realidade socioeconómica da quase totalidade do povo alentejano durante grande parte do séc. XX. Sem outro modo de providenciar alimento às famílias, muitos trabalhadores simplesmente desistiam de lutar e tornavam-se malteses, vagueando errantes pelas terras do Alentejo, Ribatejo ou Algarve, ou suicidavam-se. «Domingos Mau-Tempo» é exemplo para ambas as formas de resignação. Recordemos que é no Alentejo que se verifica a taxa de suicídio mais elevada de Portugal e uma das mais altas da Europa. Outros assalariados dedicavam-se ao banditismo, que variava entre o pequeno roubo da azeitona até, como o «José Gato», aos grupos organizados.
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O viajante chega a São Cristóvão pela Estrada Nacional 253, e quando as casas brancas se deixam ver, logo surge o Largo. Decorriam os primeiros anos do séc. XX, estava uma noite tempestuosa quando os «Mau-Tempo» partiram de «Monte Lavre» em direção a São Cristóvão. Aqui chegados, pararam a carroça no Largo.
Para a esquerda, quase no roço do horizonte rebaixado, uma pequena povoação virava a poente as paredes brancas. A planície era imensa, como já foi dito, lisa, arrasada, raras azinheiras isoladas ou aos pares, e pouco mais. Daquela pequena altura, não era difícil acreditar que o mundo não tem fim conhecido. E a povoação, lugar de destino, vista dali, à luz amarelada e sob a grande placa de chumbo das nuvens, parecia inatingível. São Cristóvão, disse o homem. […]
Estão todas as portas fechadas, só por algumas frinchas de luz mortiça se tem notícia de habitantes. Num quintal qualquer ladrou um cão. É o costume, há sempre um cão que ladra quando passa alguém, e os outros, que talvez confiados estivessem, pegam na palavra da sentinela e cada qual de cão faz sua obrigação. Um postigo foi aberto e logo fechado. E agora que a chuva parara e a casa está perto, melhor houve de sentir-se este vento frio que correu toda a rua, se engolfou pelas pequenas travessas laterais, sacudiu ramadas que passavam acima dos telhados baixos. A noite, efeito do vento, ficou mais clara. A grande nuvem afastava-se e agora o céu luzia aqui e além. Já não chove, disse a mulher ao filho que dormia e era, dos quatro, o único que ainda não sabia a boa notícia. Havia um largo, umas árvores que ramalhavam bruscas.
(Saramago, 2014, p.14, 18)
Recolhemos o testemunho de Jesuíno Nifra, que partilhou connosco as memórias do Largo num tempo próximo àquele em que decorre a ação na obra de José Saramago.
“Este largo aqui era mato e árvores grandes de azinho. Árvores grandes. Isto não havia aqui nada, para aqui também não, nada, nada… isto nada aqui havia. […] Aqui havia duas tabernas, e aqui havia ali uma azinheira muito grande, ali onde está o telefone, muito grande. E então as pessoas, não havia aqui mais divertimento nenhum, jogavam à malha à sombra da azinheira, mesmo de verão. Como dava sombra, aqui é que era o divertimento. Isto era mato tudo, tudo, tudo, daqui por ali acima.” (Nifra, 2018).
«Domingos Mau-Tempo» é um personagem que surge em oposição às características principais de «João Mau-Tempo». O seu modo de vida violento, irresponsável e alienado que o leva à resignação, num estado constante de alcoolemia, e por fim à desistência e ao suicídio, contrasta com o modo de vida responsável, consciente, ativista e revolucionário de «João Mau-Tempo». Pela figura paterna aprende o sentido das injustiças cometidas sobre os mais fracos, assistindo à violência do seu pai para com a sua mãe, e o exemplo da resignação perante as condições de vida do povo do Alentejo.
«Domingos Mau-Tempo» tem como referência empírica António Domingos Serra, avô de António Serra, que nos deixou o seu testemunho sobre o familiar.
“Sei que o meu avô foi um indivíduo que apareceu aqui por Lavre e pelas Cortiçadas, que conheceu a minha avó e que se juntaram e tiveram alguns filhos. Mas sempre, sempre com a vida muito atribulada, correu aí… portanto, ele fazia as patifarias e tinha que mudar de lugar, ali já não era bem visto. Esteve em São Cristóvão, esteve em São Geraldo, no Ciborro, esteve na Feiteira e aqui em Lavre. E às tantas já não havia sítio em que fosse bem recebido.” (Serra, 2019).
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Na bifurcação com a Rua dos Centenários, o viajante encontra a Rua 1º de Maio. No período em que decorre a obra, no início do séc. XX, esta rua era vulgarmente conhecida por Rua dos Sapateiros devido ao elevado número de sapateiros que aqui se haviam instalado. Foi o caso de «Domingos Mau-Tempo» que, pelas pistas da obra, também montou a sua oficina de sapateiro nesta rua.
A carroça seguia à frente, aos solavancos, devagar. O burro, com o frio, entorpecera. Meteram por uma travessa onde as casas alternavam com quintais, e parou diante de um casinhoto baixo. É aqui, perguntou a mulher, e o marido respondeu, É.
Com a grande chave Domingos Mau-Tempo abriu a porta. Para entrar tiveram de curvar-se, isto não é nenhum palácio de altos portões. A casa não tinha janela. À esquerda era a chaminé, de lareira rente ao chão. […]
A água entrara na arca da roupa, a mesa da cozinha tinha uma perna partida. Mas havia uma panela ao lume com umas folhas de couve e uns bagos de arroz, o menino tornara a mamar e adormecera no lado seco do enxergão. Domingos Mau-Tempo foi ao quintal para uma necessidade. E no meio da casa, Sara da Conceição, mulher de Domingos, mãe de João, ficou atenta, olhando o lume, como quem espera que um recado mal entendido se repita. No seu ventre houve um pequeno movimento. E outro ainda. Mas quando o marido entrou, não lhe disse nada. Tinham mais em que pensar.
(Saramago, 2014, p.20-1)
Jesuíno Nifra recorda as condições de vida em São Cristóvão, que remontam ao tempo da ação da obra, e fala-nos desta mesma rua.
“A Rua dos Sapateiros era a rua que tinha mais sapateiros, era além. Mas hoje há muita gente que não é desse tempo, não sabe. Nesse tempo não havia televisão, e então qualquer casal de pobres, hoje não, mas nesse tempo, aqui há noventa anos, cem, oitenta, setenta, os pobres, cada um tinha seis ou sete ou oito filhos e outros dez e doze. E quem não tinha casas próprias de heranças, para as mandar fazer não tinha dinheiro, dormiam numa casinha com quatro ou cinco metros quadrados, dormiam lá eles e a família e os filhos todos. Uma cama para os pais e uma mesa ali ao lado e assim se passava o tempo. Chover, chover, às vezes valia mais estar na rua do que estar em casa. Claro, as casas não eram dos proprietários, eram dos proprietários mas não as mandavam amanhar. Havia a vingança, essa ternura terrível e então, em qualquer eu cheguei a dormir… e depois tinha outra, eram tudo casas assim baixinhas, não havia poder para ir levantar muito alto… Era o caso, lá em casa andava assim, às vezes, e para entrar era tal e qual como o José Saramago aí escrevia.” (Nifra, 2018).
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Ao fundo do Largo surge a Rua dos Centenários, onde se situava o maior número de estabelecimentos comerciais na primeira metade do séc. XX. Devido aos trabalhos de mineração nas redondezas, nas décadas de 40, 50 e 60, esta vila contava com cerca de dois mil habitantes. E as tabernas eram em número proporcional, sempre cinco a seis estabelecimentos abertos. «Domingos Mau-Tempo» era um cliente assíduo destas tabernas, ao ponto de ter um problema de alcoolismo, que o tornava num ser irresponsável e violento no trato com a sua família. Ao passo que «Sara da Conceição» demonstrava um afeto incondicional, na esperança de manter unida a família, suportava em silêncio toda a violência, e encontrava a felicidade no mínimo gesto do seu marido, que se aproximasse de ternura.
É um filho do vento, um maltês. Domingos do seu mau tempo, que volta da taberna e entra em casa aos bordos de parede a parede, de má mente olha para o filho, e porque não me deste aquela palha, mulher malvada, toma para aprenderes. E torna a sair, vai ao vinho, de gorra e alforge com os compadres, deite isso ao rol, senhor senhorio, pois cá vai, senhor inquilino, mas olhe lá que a conta está carregada, pois que tem, sou homem de boas pagas, nunca a dever fiquei nem cinco réis furados. E não foi uma nem duas vezes que Sara da Conceição, tendo deixado o filho na vizinha, se meteu dentro da noite à procura do marido, rebuçando as lágrimas no lenço e na escuridão, de taberna em taberna, que em São Cristóvão não eram muitas, mas de mais, e sem entrar, de largo buscava com os olhos, e se o marido estava, ali se punha na sombra, apenas à espera, como outra sombra. E também aconteceu dar com ele perdido no caminho, sem tino da casa, deixado pelos amigos, e então o mundo ficava de repente bonito, porque Domingos Mau-Tempo, de gratidão por ser encontrado em desertos de assustar, entre cordões de afantasmas, lançava um braço sobre o ombro da mulher e deixava-se levar como criança que provavelmente continuava a ser.
(Saramago, 2014, p.29-30)
Voltamos à conversa com o Jesuíno Nifra, para que nos conte as suas memórias sobre as tabernas em São Cristóvão.
“As tabernas aqui, era raro não haver zaragata, sempre, sempre, sempre. Trabalhava aqui a mina com muita gente. A mina trabalhava aqui com duas, três mil pessoas. E a Mina aqui de Santa Susana não era nada, e vinha muita gente era aqui. Aqui não era nada, mas além ainda menos. E vinham aqui, juntava aqui muita gente. Não havia um sábado, não havia um domingo que não houvesse aí porrada com cabeças partidas. Zé Banha, Bubule, Tourinho, João da Bicha e Chico Francisco do Ricome… e Ramos! Eram as Tabernas que haviam aqui. O pessoal era pouco mas as Tabernas eram muitas… E então era onde a gente, nesse tempo, não tínhamos nada, juntava-se ao sábado para beber um copinho. Eram uns copinhos assim de três tostões, pequeninos, não havia para mais. E ali se passava, ali se passava…” (Nifra, 2018).
As histórias do Zé Rato
Na taberna de São Cristóvão contavam-se as histórias do Zé Rato, um exemplo da necessidade de recorrer ao banditismo como único recurso para a sobrevivência no regime de exploração dos trabalhadores, que caracterizava o latifúndio. O «Zé Gato» que encontramos na obra é a referência ficcionada do Zé Rato. O Zé Rato, filho da «tia Parrochinha», viveu perto de São Cristóvão e passava muitas vezes pela freguesia, percorrendo as casas dos mais pobres para lhes oferecer géneros alimentares que roubava dos grandes barracões do latifúndio. Diz-nos o autor José Saramago, que os leitores da obra, tal como o personagem «António Mau-Tempo», têm «João Mau-Tempo» como mestre e «Zé Gato» como explicador. «Zé Gato» encontra-se presente, intervindo ativa ou passivamente, em momentos essenciais da narrativa de «João Mau-Tempo». Se «Domingos Mau-Tempo» foi quem começou por transmitir a «João Mau-Tempo» as primeiras noções de injustiça, podemos verificar que o «Zé Gato» contribuiu para a aprendizagem de «João Mau-Tempo» sobre as noções de justiça.
Quando António Mau-Tempo passa épocas em Monte Lavre, João Mau-Tempo esquece-se de que é pai e mais velho e põe-se a andar em redor do filho, como se quisesse apurar a verdade daquelas ausências, por tão longe como Coruche, Sado, Samora Correia, Infantado e mesmo do outro lado do Tejo, e os casos verídicos que pela boca do filho vêm confirmar ou confundir a lenda do José Gato, lenda dizemos, embora tudo se queira na sua proporção, é o José Gato um pimpãozito sem glória, deixou ir os de Monte Lavre à prisão, esses casos valem mais por envolverem António Mau-Tempo, de lá estar ou ouvir dizer, do que como informação pitoresca para a história da pequena e campestre delinquência. E João Mau-Tempo tem às vezes um pensamento que não conseguiria pôr por palavras extensas, mas que, entrevisto, parece dizer que se é de bons exemplos que se trata, talvez estes de José Gato não sejam tão maus como isso, mesmo roubando e faltando nas horas mais necessárias. Um dia António Mau-Tempo dirá, Na minha vida tive um mestre e um explicador, e agora, nesta idade em que estou, voltei ao princípio para tornar a aprender tudo. Se é necessário começar já a esclarecer algumas coisas, diga-se que o pai foi o mestre, José Gato o explicador, e o que António Mau-Tempo estiver a aprender, não será ele sozinho.
(Saramago, 2014, p.201-2)
As ações subversivas do personagem «Zé Gato» desafiam a ordem da sociedade, mas, simultaneamente, corrigem os seus erros, restituindo-lhe alguma justiça, onde ela não se encontra. Há quem diga que era natural de Montemor-o-Novo, outros de São Cristóvão ou Alcácer do Sal, mas todos concordam que este era o Zé do Telhado alentejano, o Robin Hood do latifúndio alentejano, uma verdadeira inspiração no meio de tanta injustiça. Este modo de resistência, através do contrabando e da criminalidade era, por vezes, o único meio de sobrevivência para os trabalhadores rurais em situações de graves crises económicas. Estas narrativas com algum fundamento histórico fazem parte da tradição oral do Alentejo.
Mais tarde a quadrilha mudou-se para a Zona de Vale de Reis, quem é da cidade não imagina os sertões que por aí há. Eram umas grutas, umas covas nuns brejos malignos, quem é que se atrevia a chegar-se para aquelas bandas, nem a guarda, a guarda não se habilitava.
(Saramago, 2014, p.136)
As histórias do Zé Rato ainda são contadas pelos habitantes mais velhos da vila de São Cristóvão. Jesuíno Nifra recorda-o como um herói que matou a fome a muita gente. Na conversa que teve connosco, podemos ainda reconhecer o «Marrilhas», que terá como referência o Marradilhas, assim como a alusão ao local que Saramago descreveu como a «Zona de Vale de Reis», onde a quadrilha tinha o seu forte.
“Então, a trabalhar sem ganhar nada, isso a vida dele, assim quase uma espécie de político, sem ganhar nada… Já encarava a vida. E formou aquilo [quadrilha do Zé Rato] mais outros. Não fazia mal a ninguém, mas esses dois que tinham a má fama, eram esse Marradilhas e esse Estriga. Esses eram perigosos. Era o Zé Rato, filho da tia Parrochinha, tanta vez que me beijou o retrato, coitadinha, era a mãe dele, tinha uma quadra […] Além onde eles tinham o forte é a Serrinha. Tinham lá túneis, que aquilo foi de uma antiguidade que ninguém se lembrava daquilo, onde eles estavam aquartelados. Tinham vigilância, tal e qual como as tropas, sentinelas em volta. Isso aí ainda vi. Depois, muita gente ia lá daqui, de propósito ver. Para chegar lá, tinha um mato assim como estas árvores. Só eles é que sabiam por onde é que haviam de furar os túneis lá para dentro.” (Nifra, 2018).
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